O bom selvagem e a sociedade cruel
Uma das pergu...
O bom selvagem e a sociedade cruel
Uma das perguntas mais intratáveis da vida moderna é sobre se o indivÃduo tem precedência sobre o ente coletivo, ou o contrário. Prevalecerá a preferência pessoal de cada um, ou a vocação altruÃsta de se sacrificar pelos demais? Nas sociedades primitivas, o problema era menos complicado porque a sobrevivência individual estava estreitamente ligada à do grupo. Mas, por outro lado, o egoÃsmo grupal era implacável. Na era moderna, o indivÃduo adquiriu autonomia, tornou-se cidadão votante e consumidor soberano. Os conflitos entre egoÃsmo e altruÃsmo foram complicados pelo anonimato, pela burocracia e pelo gigantismo das sociedades. Fora do cÃrculo Ãntimo da famÃlia nuclear, os laços de solidariedade tornaram-se indiretos e difusos.
Mas há sempre algum altruÃsmo nas pessoas. Serão valores embutidos em nossa cultura por um legado religioso? Ou um impulso inato, recebido da natureza ao nascer? Sangue e rios de tinta, ainda não responderam a essa pergunta. No século 18, J.J. Rousseau, invertendo muitos séculos da visão pessimista do homem naturalmente pecador e mau, embutida na tradição cristã, substituiu-a por uma ideia oposta: a do homem que nasce virtuoso e degenera na sociedade. É o "bom selvagem", uma das contribuiçôes iniciais da descoberta do Brasil ao pensamento europeu.
A inversão de Rousseau teve consequências imprevistas. Se o problema residia na sociedade, bastaria ao homem transformá-la para voltar ao paraÃso. Tentação tanto mais irresistÃvel quanto estava acontecendo a transição do mundo pré-industrial para os horizontes inexplorados da Revolução Industrial. Durante três séculos, a Era da Razão vinha abalando os alicerces intelectuais da cosmovisão religiosa que sustentara a grande unidade espiritual da Idade Média. E a vitória do racionalismo humanista trazia no bojo o liberalismo polÃtico e econômico.
Ao pular-se do pecado original para o "homem naturalmente bom no mundo mau", abriu-se uma grande florescência de socialismos que, em princÃpio, se propunham refazer a sociedade segundo uma utopia generosa. Em meados do século passado, veio um golpe: a teoria da evolução das espécies, de Darwin, segundo a qual, na natureza, os seres vivos evoluÃam pela disputa de uns com outros no jogo da sobrevivência do mais apto. Essa ideia não foi logo entendida como ameaça pelos socialistas porque, como os seus coetâneos, tinham um profundo temor reverencial pela "ciência". Não demorariam, porém, a aparecer extrapolaçôes como o "darwinismo social" e, as ideias racistas supostamente "cientÃficas". "Ao vencedor as batatas", como diria Machado de Assis.
Ondas ideológicas se sucederam, sem se decidir de vez quais os fatores determinantes do comportamento humano: a natureza fÃsica, mais ou menos imutável, ou a sociedade e a cultura, amoldáveis em princÃpio pela ação polÃtica? Talvez o mais consciente tenha sido o paladino da "pátria do socialismo", Stalin, que, compreendendo o perigo das ideias, exterminou os hereges biólogos mendelianos, que duvidavam da verdade cientÃfica socialista, segundo a qual as caracterÃsticas adquiridas pelo indivÃduo se transmitiam por via hereditária.
Avanços recentes da genética trouxeram um complicador, ao sugerir que muitos traços comportamentais têm base fÃsica nos genes. Naturalmente, nenhum cientista respeitável chegou ao ponto de afirmar que o homem seja totalmente determinado pelo seu material genético. Mas certamente ficou enfraquecida a corrente externa que reduzia o indivÃduo a meras determinaçôes do contexto social.
Não se está aqui, pretendendo debater a tese do "gene egoÃsta", conforme a polêmica expressão de Richard Dawkins. Nem se uma eficiente engenharia social é viável. Penso nessas questôes porque me preocupo com o simplismo obtuso de inculpar-se a sociedade por todos os males possÃveis e imagináveis: da seca do Nordeste à ignorância e à s desigualdades. Carências há, sem dúvida. Mas podem ser relativas, criadas pela insaciabilidade das veleidades humanas. Um Ikung do deserto de Kalahari contenta-se com muito pouco, ao passo que um americano fica infeliz se tiver um pouco menos do que o vizinho do lado. E em São Paulo, presos condenados tacaram fogo nas celas porque queriam televisão a cabo e ar-condicionado!...
Há século e meio, Marx achava que a riqueza resultava da exploração da mais-valia do trabalho proletário pela classe burguesa. A ideia não passou do "provão" da história. As desigualdades nas sociedades modernas provêm sobretudo de que alguns conseguem maior produtividade, e acumulam mais, por conta do que produzem. Bill Gates começou na garagem de casa com talento e informação e se fez multibilionário com suas inovaçôes tecnológicas. O mistério do progresso está na inovação e na acumulação. A acumulação aumenta a desigualdade em relação ao que não acumulou. Há dois séculos passados, as diferenças de renda per capita entre os paÃses ricos e os mais pobres eram de duas ou três vezes. O crescimento da produtividade dos atuais paÃses industrializados, entre 1820 e 1913, foi quase sete vezes maior do que entre 1700 e 1820, e a renda real per capita cresceu três vezes no perÃodo. Hoje, a diferença entre SuÃça e o Burundi, é de 390 vezes, e entre a média dos industrializados e a dos de mais baixa renda, é de 74 vezes. Possivelmente, o fator mais perverso terá sido o crescimento populacional descontrolado, que condenou os subdesenvolvidos a carregar água em peneira.
(Roberto Campos)
O primeiro perÃodo do texto diz que:
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